Saúde // Pesquisadores querem produzir células que devem revolucionar tratamentos de câncer, hepatite, doenças autoimunes e do vírus HIV
Entre tubos de ensaio, doses de paciência e laboratórios silenciosos, pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) conseguiram dar condições ao Recife de ganhar um centro de referência nacional para produção de "células dendríticas".
O nome pouco popular e esquisito é um passo para se produzir vacinas e revolucionar o tratamento de pessoas que têm câncer, hepatite, doenças autoimunes e até mesmo o vírus HIV. O feito inédito já foi aprovado na comunidade científica internacional. As células dendríticas funcionam como fiscais imunológicos do organismo e apresentam os corpos estranhos para serem combatidos e eliminados pelos anticorpos. Quando elas não funcionam, a doença se alastra sem combate eficiente.
A descoberta é um avanço na ciência e representa esperança para várias pessoas que passam por tratamentos longos e debilitantes, alguns que levam à morte. Hoje, o departamento de genética da UFPE, sob a coordenação de Sergio Crovella, tem tecnologia suficiente para produzir a célula dendrítica, principal insumo de futuras vacinas. O domínio da técnica não garante a cura total dessas enfermidades, segundo informou o pesquisador. Mas a vacina produzida com este componente sanguíneo vai fortalecer a imunidade do paciente e, no caso do HIV, por exemplo, impedir o desenvolvimento dos sintomas da Aids.
Segundo Crovella, o objetivo mais urgente, agora, é conseguir recursos para expandir as pesquisas e implantar o centro de referência, orçado em R$ 9 milhões. Parece um valor exorbitante, mas não se levada em conta a melhora da qualidade de vida dos pacientes e a redução dos custos terapêuticos. Só no Brasil, o Ministério da Saúde estima que existem 630 mil pessoas infectadas pelo HVI, além de 200 mil com sintomas da doença e já em tratamento pelo Sistema Único de Saúde. Já em Pernambuco, segundo a Secretaria estadual de Saúde, de 1983 até agora, o estado registrou 14 mil casos de Aids, sendo que 5.232 pessoas morreram. "A proposta do laboratório é avaliar as características genéticas do paciente contaminado, assim como melhorar a produção da vacina em fase de estudo desde 2001", pontuou o coordenador.
E por que se falar tanto em HIV e Aids, quando a descoberta vai beneficiar pacientes com vários tipos de doenças? A resposta vem de longe, desde 2001. Começou a partir de um estudo inédito realizado para se criar, na própria UFPE, uma vacina capaz de deixar o organismo imune ao HIV. No ano passado, o maior passo foi dado quando os cientistas da UFPE conseguiram identificar dois gens capazes de reforçar a imunidade do organismo, o MBL2 e o NOS1. Eles perceberam que a falta dessas proteínas no DNA de alguns pacientes impediu a eficácia da vacina que continha a célula dendrítica saudável, mas esperam levar as pesquisas adiante para solucionar as deficiências encontradas.
Todos esses detalhes foram apresentados, ontem, num evento realizado no auditório do Centro de Ciências Biológicas da UFPE, com a presença de estudantes, pesquisadores e do vice-reitor, Gilson Edmar. Os pesquisadores deixaram clara a preocupação com o futuro, porque os estudos do componente sanguíneo precisam avançar e entrar na segunda fase. "Estamos organizando um laboratório dedicado exclusivamente à produção em larga escala de células dendríticas para serem usadas em terapias vacinais", observou Crovella.
Saiba mais
- A pesquisa para desenvolver a vacina terapêutica começou em 2001 com o objetivo de auxiliar o tratamento do HIV e deixar os pacientes imunes ao vírus. A descoberta de como produzir a célula dendrítica saudável pode ajudar em outras doenças.
- O primeiro passo para desenvolver a vacina foi a montagem da infraestrutura no Instituto de Pesquisa em Imunoterapia de Pernambuco (Ipipe), localizado no Laboratório de Imonopatologia Keizo Asomi (Lika). O local é chamado de NB3.
- A estratégia original do estudo consiste na retirada de uma quantidade de células dendríticas (componentes do sistema imunológico que acusam a presença de invasores às células de defesa) e do vírus do paciente.
- A vacina passou por todos os testes pré-clínicos com modelos in vitro e em modelos animais. Em seguida, foram realizados estudos com 18 pessoas portadoras de HIV voluntárias. Nesse período, a vacina fez efeito em oito dos pacientes pesquisados.
- Há um ano e meio, a equipe de pesquisadores da UFPE passou a estudar as razões pelas quais a vacina não surtiu efeito em 10 dos 18 pacientes. Estudaram o DNA dos doentes, 778 variações do genoma e descobriram que, onde não houve respostas, havia falta dos gens MBL2 e NOS1.
- A partir da segunda fase da pesquisa, a perspectiva é chegar perto dos 100% de redução da carga viral dos pacientes. Nesse processo, serão reforçados os conceitos provados na fase I. Além de receber apoio da USP, a UFPE também contará com o apoio da UFRJ e do Lika.
Fonte: Sergio Crovella e Ascom/UFPE
Estudos chegam à segunda fase
Os gens MBL2 e NOS1 apresentam um papel importante no estudo da vacina que será feita em parceria entre a UFPE e a Universidade de São Paulo, com o objetivo de melhorar a imunidade dos pacientes e impedir o desenvolvimento de doenças. O primeiro tem capacidade de controlar a replicação do vírus, enquanto o segundo participa ativamente do processo de maturação das células dendríticas. A descoberta será necessária na segunda fase da pesquisa que contará com a participação de 50 voluntários portadores de HIV, sendo os testes realizados em São Paulo. A seleção ainda não teve início.
A pergunta que todos querem saber, contudo, ainda não pode ser conhecida. O professor do departamento de genética da UFPE e coordenador da pesquisa, Sergio Crovella, disse que não há data prevista para que a vacina chegue aos hospitais e ao Sistema Único de Saúde. Só a primeira fase de estudos tem previsão de durar dois anos. Ele frisou, no entanto, que o importante é focar no que já existe: o domínio da UFPE na produção de células dendríticas. "A chave da vacina é a preparação da célula dendrítica e a identificação do patrimônio genético do paciente. Queremos criar, no Recife, um lugar para produção de células que serão usadas em terapia vacinal", observou.
Segundo o diretor do Laboratório de Imunopatologia Keizo Asami, José Luiz de Lima Filho, até o momento a UFPE só dispõe de cerca de R$ 600 mil para expandir o NB3, um laboratório de segurança máxima onde a pesquisa da vacina terapêutica começou a ser pesquisada. "Estamos esperançosos nos investimentos, por conta das lei que permite parcerias público-privadas. Qualquer doação para esse estudo será bem-vinda", declarou.
A produção da dendrítica segue alguns passos. Primeiro, é retirada uma célula do sangue do paciente chamada de monócito, que é a célula dendrítica imatura. Em seguida, o pesquisador retira uma amostra do vírus HIV do paciente, isola em laboratório e a deixa inativa. Depois, ele mistura in vitro o vírus inativo com a célula dendrítica imatura. Quando ela reconhece o vírus, que não consegue destruí-la, amadurece e o processa. Dessa forma, já transformada em vacina, pode ser injetada no paciente para evitar o desenvolvimento dos sintomas da doença.
Fonte: Diário de Pernambuco (26.03.2010)